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Dois de Ouros



O caminho misterioso não vai para dentro, mas para fora, não entra nos labirintos, mas sai deles. O caminho misterioso sobe por frias névoas de hidrogênio, braços de espiral rotativos e supernovas que explodem. A última etapa foi um tecido de macromoléculas autoconstruídas.



("Maya", Jostein Gaarder)







segunda-feira, 12 de novembro de 2018


Epílogo do livro


 "Bilhões e Bilhões" 

Carl Sagan


Com seu otimismo característico em face de uma ambiguidade angustiante Carl escreve o final de uma obra prodigiosa, apaixonada, ousadamente interdisciplinar e espantosamente original.

Poucas semanas mais tarde, no início de dezembro, ele estava sentado à nossa mesa de jantar, considerando o prato predileto com um olhar de perplexidade. Não sentia vontade de comer. Em nossos melhores dias, a minha família tinha sempre se orgulhado do que chamamos "wodar", um mecanismo interior que incessantemente perscruta o horizonte à procura dos primeiros sinais de possíveis desastres. Durante nossos dois anos no vale da sombra, o nosso wodar se mantivera num constante estado de alerta máximo. Nessa montanha russa de esperanças eliminadas, alimentadas e eliminadas de novo, até a mais leve variação num único elemento da condição física de Carl fazia soar as campainhas de alarme.

Um olhar se passou entre nós. Eu imediatamente comecei a tecer uma hipótese benigna para explicar essa repentina falta de apetite. Como de costume, argumentava que poderia não ter nada a ver com a sua doença. Era apenas um desinteresse transitório pela refeição, que uma pessoa saudável nem sequer notaria. Carl conseguiu abrir um pequeno sorriso e disse apenas: "Talvez". Mas daquele momento em diante teve de se forçar a comer, e suas forças diminuíram visivelmente. Apesar disso, insistiu em cumprir um antigo compromisso de dar duas conferências, no final daquela semana, na área da baía de San Francisco. Quando voltou a nosso hotel depois da segunda palestra, estava exausto. Telefonamos para Seattle.

Os médicos nos mandaram voltar para o Hutch imediatamente. Eu receava ter de dizer a Sasha e Sam que não voltaríamos para casa no dia seguinte, conforme o combinado; que, ao contrário, estaríamos fazendo uma quarta viagem a Seattle, um lugar que se tornara para nós sinônimo de terror. As crianças ficaram aturdidas. Como poderíamos acalmar os seus medos de que essa seria, como já fora três vezes antes, uma temporada de seis meses longe de casa ou, como Sasha imediatamente suspeitou, algo muito pior? Mais uma vez repeti o meu mantra de levantar os ânimos: o papai quer viver. Ele é o homem mais corajoso e valente que conheço. Os médicos são os melhores que o mundo pode oferecer... Sim, Hanukkah teria de ser adiado. Mas assim que o papai estivesse melhor...

No dia seguinte, em Seattle, um exame de raios X revelou que Carl tinha uma pneumonia de origem desconhecida. Repetidos exames deixaram de apresentar evidências de uma bactéria, vírus ou fungo culpado. A inflamação nos seus pulmões era, talvez, uma reação tardia à dose letal de radiação que recebera seis meses antes como preparativo para o último transplante de medula. Megadoses de esteroides só aumentaram o seu sofrimento e não conseguiram limpar os seus pulmões. Os médicos começaram a me preparar para o pior. Agora, quando me arriscava a andar pelos corredores do hospital, encontrava expressões inteiramente diferentes nos rostos já familiares da equipe. Eles se encolhiam com simpatia ou desviavam os olhos. Era hora de os garotos virem para o oeste.

Quando Carl viu Sasha, a visão da filha pareceu realizar uma mudança milagrosa na sua condição. "Bela, bela, Sasha", disse. "Você não é só bela, você também é deslumbrante." Ele lhe disse que, se conseguisse sobreviver, seria em parte por causa da força que sua presença lhe dera. E, durante as horas seguintes, os monitores do hospital pareceram documentar uma mudança na situação. Minhas esperanças se renovaram, mas no fundo da minha mente não pude deixar de observar que os médicos não partilhavam meu entusiasmo. Viam nessa recuperação das forças aquilo que realmente era, o que eles chamam de "veranico", uma breve trégua do corpo antes de sua luta final.

"É uma vigília de morte", Carl me disse calmamente. "Vou morrer." "Não", protestei. "Você vai vencer desta vez, assim como já venceu antes, quando tudo parecia sem esperança." Ele se virou para mim com aquele mesmo olhar que eu tinha visto inúmeras vezes nos debates e brigas de nossos vinte anos de trabalhos em conjunto e amor apaixonado. Com uma mistura de fino bom humor e ceticismo, mas como sempre, sem nenhum vestígio de autopiedade, disse ironicamente: "Bem, vamos ver quem tem razão desta vez".

Sam, então com cinco anos, veio ver seu pai pela última vez. Embora estivesse com dificuldade para respirar e falar, Carl conseguiu se recompor para não assustar seu filhinho. "Eu te amo, Sam", foi só o que conseguiu dizer. "Eu também te amo, papai", disse Sam solenemente.

Ao contrário das fantasias dos fundamentalistas, não houve conversão no leito de morte, nenhum refúgio de última hora numa visão consoladora do céu ou de uma vida após a morte. Para Carl, o que mais importava era a verdade, e não apenas aquilo que poderia fazer com que nos sentíssemos melhor. Mesmo nessa hora, quando qualquer um seria perdoado por se afastar da realidade de nossa situação, Carl foi inabalável. Quando olhamos profundamente nos olhos um do outro, foi com a convicção partilhada de que a nossa maravilhosa vida em conjunto estava terminando para sempre.

Tudo começara em 1974, num jantar oferecido por Nora Ephron na cidade de Nova York. Lembro-me de como Carl estava bonito com as mangas arregaçadas e seu sorriso deslumbrante. Falamos sobre beisebol e capitalismo, e vibrei de poder fazê-lo rir com tanto gosto. Mas Carl era casado, e eu tinha um compromisso com outro homem. Saíamos juntos como casais. Nós quatro nos tornamos íntimos e começamos a trabalhar juntos. Havia momentos em que Carl e eu ficávamos sozinhos, e a atmosfera era eufórica e altamente carregada mas nenhum de nós deixava que o outro entrevisse os verdadeiros sentimentos que estavam em jogo ali. Era impensável.

No início da primavera de 1977, a NASA convidou Carl a criar uma comissão para selecionar o conteúdo de um registro fonográfico que seria afixado em cada uma das naves espaciais Voyager 1 e 2. Depois de completar um ambicioso reconhecimento dos planetas mais distantes e suas luas, as duas espaçonaves seriam gravitacionalmente expelidas do sistema solar. Era a oportunidade de enviar uma mensagem aos possíveis seres de outros mundos e tempos. Seria muito mais complexo que a placa que Carl, sua mulher Linda Saizman, e o astrônomo Frank Drake tinham colocado na Pioneer 10. Essa fora a pioneira, mas era essencialmente uma placa de licença. O registro das Voyager incluiria saudações em sessenta línguas humanas e em língua de baleias, um ensaio sonoro evolucionário, 116 imagens da vida sobre a Terra e noventa minutos de música escolhida dentre uma gloriosa diversidade de culturas do mundo. Os engenheiros projetaram uma vida útil de 1 bilhão de anos para os preciosos registros fonográficos.

Quanto tempo é 1 bilhão de anos? Em 1 bilhão de anos, os continentes da Terra estariam tão alterados que nem reconheceríamos a superfície de nosso próprio planeta. Há mil milhões de anos, as formas de vida mais complexas sobre a Terra eram as bactérias. No meio da corrida das armas nucleares, o nosso futuro, mesmo a curto prazo, parecia uma perspectiva duvidosa. Aqueles dentre nós que tivemos o privilégio de trabalhar na confecção da mensagem das Voyager realizamos a tarefa com um propósito quase sagrado. Era concebível que, como Noé, estivéssemos organizando a arca da cultura humana, o único artefato que sobreviveria num futuro inimaginavelmente distante.

Durante a minha procura assustadora pelo trecho mais digno de música chinesa, telefonei para Carl e deixei uma mensagem no seu hotel em Tucson, onde ele estava dando uma palestra. Uma hora mais tarde, o telefone tocou no meu apartamento em Manhattan. Atendi e ouvi uma voz dizer: "Voltei para o meu quarto e encontrei uma mensagem que dizia: 'Annie telefonou'. E me perguntei: por que você não deixou essa mensagem há dez anos?".

Blefando, brincando, respondi alegremente: "Bem, estava pensando em lhe falar sobre isso, Carl". E depois, mais sobriamente: "Você está falando sério?". "Sim, estou", disse ele ternamente. "Vamos nos casar." "Sim", disse eu e naquele momento sentimos que agora sabíamos como deve ser a sensação de descobrir uma nova lei da natureza. Era um "heureca" - o momento em que se revela uma grande verdade - que seria confirmada pelas inúmeras linhas independentes de evidências nos vinte anos seguintes. Mas era também a admissão de um compromisso ilimitado. Uma vez admitidos neste mundo de maravilhas, como poderíamos ser felizes fora dele? Era 1º de junho, nosso dia santo do amor. Desde então sempre que um de nós não estava sendo sensato com o outro, a invocação do 1º de junho geralmente fazia com que o ofensor recobrasse a razão.

Antes disso, eu perguntara a Carl se esses hipotéticos extraterrestres de 1 bilhão de anos no futuro saberiam interpretar os ondas cerebrais de alguém que medita. "Quem sabe? Um bilhão de anos é muito, muito tempo", foi a sua resposta. "Admitindo que poderiam ter essa capacidade, por que não tentar?"

Dois dias depois do telefonema que mudou as nossas vidas, entrei num laboratório no Hospital Bellevue, na cidade de Nova York, onde me ligaram a um computador que transformou todos os dados do meu cérebro e coração em sons. Percorri um itinerário mental de uma hora, pensando em todas as informações que desejava transmitir. Comecei pensando sobre a história da Terra e a vida que contém. Dentro de minhas possibilidades, tentei pensar um pouco sobre a história das ideias e a organização social humana. Pensei sobre a situação difícil em que se encontra a nossa civilização e sobre a violência e a pobreza que tornam este planeta um inferno para muitos de seus habitantes. No final, eu me permiti uma declaração pessoal de como se sente uma pessoa apaixonada.

Agora a febre de Carl era violenta. Eu o beijava e esfregava o meu rosto contra o dele, ardente e não barbeado. O calor de sua pele era estranhamente tranquilizador. Eu desejava repetir muitas vezes esse gesto, para que seu ser físico e vibrante se tornasse uma lembrança sensorial indelevelmente gravada. Estava dividida entre exortá-lo a lutar e querer vê-lo livre dos aparelhos torturantes de suporte à vida, bem como do demônio que o tinha atormentado durante dois anos.

Telefonei para sua irmã Cari, que tinha dado tanto de si para impedir esse fim, para seus filhos adultos, Dorion, Jeremy e Nicholas, e para o neto, Tonio. Toda a nossa família tinha celebrado o Dia de Ação de Graças em nossa casa em Ithaca, há algumas semanas. A opinião unânime era de que fora o melhor Dia de Ação de Graças que já tivéramos. Saímos todos da festa com uma espécie de brilho. Reinara uma autenticidade e uma intimidade nessa reunião, que nos deu um grande senso de unidade. Agora eu colocava o fone perto do ouvido de Carl, para que ele pudesse ouvir, uma a uma, as suas despedidas.

Nossa amiga escritora e produtora Lynda Obst veio correndo de Los Angeles para estar ao nosso lado. Lynda estava presente naquela primeira noite encantada na casa de Nora, quando Carl e eu nos conhecemos. Ela tinha testemunhado em primeira mão, mais do que qualquer outra pessoa, nossas colaborações pessoais e profissionais. Como produtora original do filme Contato, trabalhara junto conosco durante os dezesseis anos em que preparamos o projeto para produção.

Lynda tinha observado que a incandescência constante de nosso amor exercia uma espécie de tirania sobre aqueles ao redor que tinham sido menos felizes na sua busca de um parceiro de alma. Entretanto, em vez de ficar ressentida com nosso relacionamento, Lynda o acalentava como um matemático faria com um teorema da existência, algo que demonstra que uma coisa é possível. Ela costumava me chamar de Senhorita Felicidade. Carl e eu apreciávamos muito o tempo que passávamos com ela, rindo, conversando até tarde da noite sobre ciência, filosofia, fofocas, cultura popular, tudo o mais. Agora essa mulher que tinha voado alto conosco, que me acompanhara no dia vertiginoso em que eu escolhera o meu vestido de noiva, estava ali ao nosso lado, enquanto dizíamos adeus para sempre.

Durante dias e noites, Sasha e eu nos revezamos sussurrando ao ouvido de Carl. Sasha lhe repetia o quanto o amava e falava sobre todos os modos que descobriria para honrá-lo. "Homem admirável, vida maravilhosa", eu lhe disse mais de uma vez. "Tudo muito bem feito. Com o orgulho e a alegria de nosso amor, eu o deixo partir. Sem medo. 1º de junho. 1º de junho. Para valer..."

Enquanto faço as correções nas provas, que Carl receava seriam necessárias, seu filho Jeremy está no andar de cima dando a Sam a sua lição de computador noturna. Sasha está no quarto fazendo os deveres. Com suas revelações sobre um pequenino mundo embelezado pela música e pelo amor, a nave Voyager já saiu do sistema solar e se dirige ao mar aberto do espaço interstelar. A uma velocidade de 70 mil quilômetros por hora, projeta-se em direção às estrelas e a um destino com o qual só podemos sonhar. Estou cercada por pacotes do correio, cartas de pessoas de todo o planeta que lamentam a perda de Carl. Muitos lhe dão o crédito por tê-los despertado. Alguns dizem que o exemplo de Carl os inspirou a trabalhar pela ciência e pela razão contra as forças da superstição e do fundamentalismo. Esses pensamentos me consolam e me resgatam de minha dor. Permitem que eu sinta, sem recorrer ao sobrenatural, que Carl vive.

Ann Druyan
14 de fevereiro de 1997
Ithaca, Nova York.

domingo, 8 de novembro de 2015

"Os olhos dos adolescentes" (Rubem Alves)

Eu estava adiantado para um compromisso. Fui fazer hora no jardim da cidade – cheio de árvores velhas. Assentei-me num banco, vagabundo. Aproximou-se um menino com caixa de engraxate. “Vai uma graxinha?” “Vai”, respondi. Não havia mesmo nada a fazer. Começamos a conversar. É bom conversar com esses meninos que desde cedo aprendem que, se eles não se virarem, não vão ter o que comer. De repente ele olhou para um homem que se aproximava. “Lá vem um freguês!”, ele observou. “Faz tempo que você o conhece?”, perguntei. “Não senhor, nunca vi ele não.” Intrigado, perguntei: “Então, como é que você sabe que ele é um freguês?” Ele me olhou espantado, admirado de que eu fosse tão burro e desatento. “O senhor não olhou pros sapatos dele não?”
Eu e ele tínhamos bons olhos. Meus olhos, de quem está com a vida ganha, podiam vagabundear. Mas os dele eram olhos de caçador. As caças dos engraxates se reconhecem pelos sapatos.
“O que vemos não é o que vemos, senão o que somos” (Bernardo Soares). Onças não veem bananas. Macacos não veem orquídeas. Gatos não veem telas de Van Gogh.
Dentre todos os órgãos dos sentidos, os olhos são os mais simples do ponto de vista anatômico e funcional. Em tudo se parecem com uma câmera fotográfica, como o demonstram aqueles desenhos nas salas de espera dos oftalmologistas. Mas o fato é que, contrariando as simplicidades anátomo-funcionais, a visão é muito complicada: “Não basta abrir a janela para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores” (Alberto Caeiro).
O que você vê é o que você quer ver. Meu ofício de psicanalista se baseia nisso. O paciente vai contando a sua estória, pensando que eu estou prestando atenção no que ele está dizendo. Mas eu estou olhando na direção oposta, tentando ver o rosto dele refletido naquilo sobre o que ele fala. Igual ao que acontece diante do vidro de uma vidraça: a gente vê as coisas lá fora mas, prestando atenção, vê o rosto também refletido no vidro, como num espelho.
Vou agora deixar os olhos e começar num lugar completamente diferente: a adolescência. Inventei um princípio de criatividade: “Ostra feliz não produz pérola”. É preciso que haja, dentro da pobrezinha, uma areia, um objeto irritante. Ela produz a pérola lisa para se livrar da irritação do grão de areia. Os adolescentes são um dos muitos grãos de areia que me irritam. São um desafio intelectual. Mistérios. Nenhum dos ângulos através dos quais têm sido compreendidos os esgota. Biologicamente a adolescência pode ser descrita como uma série de transformações anatômicas e hormonais. É verdade. Sob um ponto de vista psicológico ela pode ser entendida como uma crise que decorre de um descompasso entre os processos mentais e os processos físicos. Mentalmente, os adolescentes continuam a pensar como crianças. Mas o tamanho do seu corpo, agora, impede que os pais apliquem sobre eles as técnicas de persuasão e controle que haviam sido eficazes quando eles eram crianças. Ao poder da adolescência corresponde a impotência dos pais. E por aí vão se multiplicando as explicações, todas verdadeiras. Eu mesmo já propus uma série de alternativas descritivas, que vão das maritacas até Orlando. Faço, agora, conexão entre a adolescência e as coisas que disse sobre a visão: percebi que a adolescência pode ser também compreendida sob um ângulo oftalmológico: a adolescência é uma perturbação do olhar, um tipo raro de cegueira: os olhos dos adolescentes não conseguem ver cenários.
 Explico-me por meio de uma imagem. É uma excursão. O ônibus está lotado. Seu itinerário o leva pelos mais fascinantes cenários. Passa pelos sopés de montanhas cobertas de neve, atravessa florestas de árvores gigantescas, cruza planícies verdes cheias de animais, margeia cenários paradisíacos ao longo de praias, atravessa rios cristalinos... A viagem chega ao fim. Saem os excursionistas. Adolescentes. Gastaram todos os filmes de suas câmeras fotográficas. Reveladas as fotos, vem o espanto: nenhuma foto de cenário. Para dizer a verdade, o ônibus permaneceu com as cortinas fechadas o tempo todo. As fotografias são, todas elas, fotografias de adolescentes sorridentes.
Notei que, para os adolescentes, não importa o lugar para onde vão. Os olhos deles não veem cenários. O lugar é apenas o cenário onde a turma vai se encontrar para representar a mesma peça que era representada na cidade de origem. Os adolescentes jamais desembarcam deles mesmos. Os seus olhos registram uma coisa apenas: a turma. Na verdade, não é bem a turma. Seus olhos registram “eu-na-turma”.
Para isso há uma explicação psicossociológica. Todos nós temos uma profunda necessidade de reconhecimento. É preciso que o outro me olhe e que eu sinta o que seu olhar está dizendo: “Gosto de você. É bom que você exista.” Esta é a razão por que o olhar do pai, da mãe, da professora, é tão decisivo para a formação da autoimagem da criança. A criança fica sendo aquilo que o olhar dos outros diz que ela é.
Para a criança, importante é o olhar do pai e da mãe. Na adolescência há uma troca dos olhares importantes. Os adolescentes querem ser grandes. Por isso o olhar do pai e da mãe incomodam. Olhares de pai e mãe são acriançantes. Eles desejam que os filhos permaneçam pequenos. Que continuem vivendo sob a proteção de suas asas. Isso, às vezes por razões de sabedoria: sabem que os filhos adolescentes ainda não sabem as coisas do mundo. Às vezes por razões neuróticas: não querem que seus filhos batam asas... Aí os adolescentes fogem do olhar do pai e da mãe. Procuram o olhar dos outros adolescentes. Se vocês prestarem atenção perceberão que as relações entre os adolescentes, reduzidas à sua condição mínima, se resume em: “Me vejam, me vejam, me vejam”. Essa é a razão por que se comportam como maritacas, todos gritando ao mesmo tempo. Não suportam ficar longe dos olhos dos outros. Longe dos olhos, agarram o telefone. A substância das conversas entre os adolescentes, ao telefone, não é aquilo que eles dizem, mas o fato de que há alguém que ouve. Longe dos olhos dos outros, eles se sentem perdidos. Nada mais terrível para um adolescente que passar um fim de semana num sítio paradisíaco dos pais, na tranquilidade da natureza, na beleza dos jardins, no gozo das mordomias – sozinho.

Eu compreendo que seja assim. Mas tenho dó. O mundo é tão bonito. E não faz diferença que seja o pantanal, o litoral, as montanhas, o deserto: eles vão para esses lugares mas não veem nada. Os cenários não lhes dão prazer. Os lugares são apenas um ponto, definido por meio de latitudes e longitudes, onde os mesmos olhos e os mesmo rostos que se viram vão se ver de novo. No mundo dos adolescentes não há cenários. Só há outros adolescentes. Para essa doença não há remédio. Ela se cura com o tempo.

“E aí? – Cartas aos adolescentes e a seus pais”, Rubem Alves, Papirus, 3ª edição, 2000."

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Pálido Ponto Azul

No episódio final da primeira temporada da nova série Cosmos, Neil deGrasse Tyson lê alguns trechos do livro Pálido Ponto Azul, de Carl Sagan. O pálido ponto azul é a Terra vista de bem longe, fotografada por uma sonda perto de Saturno.

Visão de Saturno (Cassini): 1,5 bilhão de km
Foto: Nasa/Divulgação 19/07/2013

Transcrevo aqui:

“Olhem de novo para o ponto. É ali. É a nossa casa. Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, que conhecemos, de quem já ouvimos falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas vidas. Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, "superastros", "líderes supremos", todos os santos e pecadores da história da nossa espécie, ali – num grão de poeira suspenso num raio de sol.
A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores momentâneos de uma fração desse ponto. Pensem nas crueldades infinitas cometidas pelos habitantes de um canto desse pixel contra os habitantes mal distinguíveis de algum outro canto, em seus frequentes conflitos, em sua ânsia de recíproca destruição, em seus ódios ardentes.
Nossas atitudes, nossa pretensa importância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, tudo é posto em dúvida por esse ponto de luz pálida. O nosso planeta é um pontinho solitário na grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, em meio a toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos.
A Terra é, até agora, o único mundo conhecido que abriga a vida. Não há nenhum outro lugar, ao menos no futuro próximo, para onde nossa espécie possa migrar. Visitar, sim. Goste-se ou não, no momento a Terra é o nosso posto.
Tem-se dito que a astronomia é uma experiência que forma o caráter e ensina humildade. Talvez não exista melhor comprovação da loucura das vaidades humanas do que esta distante imagem de nosso mundo minúsculo. Para mim, ela sublinha a responsabilidade de nos relacionarmos mais bondosamente uns com os outros e de preservarmos e amarmos o pálido ponto azul, o único lar que conhecemos.”

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Comparando as enchentes: 1997 e 2012

Algumas fotos que eu tirei na enchente de 1997.
No final desta postagem há links para os álbuns de fotos das enchentes de 1997 e de 2012.

Av. José Luís Marinho

Praça da Matriz



Av. Portela Salles

Para ver mais fotos da enchente de 1997 clique no link:  

Para ver as fotos da enchente de 2012: 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Monitorando o nível do rio Muriaé

Para quem quiser monitorar o nível do rio Muriaé em Italva:

Acesse esta página do INEA (Instituto Estadual do Ambiente):


No menu Sensores – no alto, à esquerda – clique em Nível.
Role a página até a Região Norte e Noroeste.
Clique sobre Italva.

Aparecerão os dados enviados pela estação de Italva, atualizados a cada 15 minutos.

Praça da Bíblia

Av. Cel. Luís Salles

Clique sobre as fotos para ver no tamanho original.

sábado, 31 de dezembro de 2011

2012

Receita de Ano Novo


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?) .

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

(Carlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Exercício para 31 de dezembro


Exercício

Transforme os dias em pequenos objetos com os quais você pode brincar. Em bolas de gude amarelas, vermelhas, verdes e azuis. Uma semana inteira você consegue controlar assim. Segunda-feira vermelha, terça-feira verde, quarta-feira violeta... Se você tentar reunir o estoque para um mês inteiro, perderá rapidamente a visão do conjunto. Onde é que ficou o dia 18? O dia 26 era azul ou vermelho? Um ano é suficiente para cobrir o chão da cozinha. Dia 8 de janeiro embaixo da geladeira, 26 de maio debaixo do aquecedor, dia 24 de outubro em algum lugar embaixo do fogão.

Você não consegue andar pela cozinha sem pôr as bolas de gude em movimento. Um dia bate no outro - como moléculas de pensamentos na memória. Agora trezentas e sessenta e cinco esferas rolam pelo chão. Lentamente, o dia 3 de novembro vai rodando pelo chão em direção à mesa, bate na véspera do Natal, que continua rolando até o domingo de Pentecostes.

Você tem um apartamento de três cômodos e multiplica as trezentas e sessenta e cinco bolinhas do ano por setenta ou oitenta. O dia 17 de abril de 1983 pula a soleira da porta e sai rolando pela sala, onde bate no dia 18 de outubro de 1954, no dia 27 de junho de 1996 e no 24 de março de 2012 até parar ao lado do 5 de dezembro de 1989, embaixo da televisão.

 Você nada na opulência. Você se acha rico. Então alguém bate à porta. Cuidadosamente, você escala o chão da sala, afasta algumas centenas de bolas da porta e a abre para uma jovem. Como você não tem rosas vermelhas, oferece a ela um punhado de bolas de gude. Mas a jovem quer jogar com as bolinhas que você lhe dá, e, antes que você se dê conta, já perdeu um milhar delas.

Então batem de novo à porta, e entra um garotinho. Você lhe dá alguns milhares de bolas. No dia seguinte, ele traz sua irmã. Ela exige tantas bolas quanto seu irmão. E só agora você percebe que o seu estoque está começando a diminuir. O chão não está mais tão abarrotado. As bolas de gude não se empilham mais por todos os cantos, como nos velhos bons tempos.

 E depois aparece o homem à porta. Ele lhe mostra um papel no qual consta que você lhe deve quatro mil e quinhentas bolinhas. Você logo se lança ao chão, conta o número exato de bolinhas e paga sua dívida instantaneamente. Você quer saber o que tem, quer saber com o que ainda pode contar. Mas agora só lhe restam umas poucas bolas. Você tem que procurar, tem que correr de um quarto para o outro para achar mais uma.

 Você tranca a porta e procura proteção. O que ainda lhe resta quer guardar para si.

(GAARDER, Jostein. O Pássaro Raro. Tradução de Sonali Bertuol. - São Paulo: Companhia das Letras, 2001. – 7ª reimpressão, 2007.)

Jostein Gaarder é o autor de O Mundo de Sofia.