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Dois de Ouros



O caminho misterioso não vai para dentro, mas para fora, não entra nos labirintos, mas sai deles. O caminho misterioso sobe por frias névoas de hidrogênio, braços de espiral rotativos e supernovas que explodem. A última etapa foi um tecido de macromoléculas autoconstruídas.



("Maya", Jostein Gaarder)







terça-feira, 24 de maio de 2011

O Dia do Curinga



Um trecho muito interessante do livro “O Dia do Curinga”, de Jostein Gaarder:
O pai de Hans-Thomas conversa com ele:

“—Mil trezentos e quarenta e nove — começou ele.
—A morte negra — respondi. Eu sabia alguma coisa sobre história, mas não sabia o que a peste negra podia ter a ver com o tema do acaso.
—O.k. — disse ele. E continuou: — Você deve saber que metade da população da Noruega sucumbiu à peste. Só que existe aí uma coisa de que nunca falamos.
Quando ele começava assim eu já sabia que ia ter de ouvir uma longa explanação.
— Você tem consciência de que naquela época você tinha muitos milhares de antepassados? — perguntou meu pai.
Balancei a cabeça em sinal de dúvida sobre o que ele havia dito. Como aquilo podia ser possível?
—Todos nós temos um pai e uma mãe, quatro avós, oito bisavós, dezesseis tataravós, e assim por diante. Se você for fazendo as contas até voltar a 1349, vai chegar a um número bem grande.
Concordei.
—Então veio a peste. A morte rondava os povoados, um a um, e as crianças eram as suas maiores vítimas. Em algumas famílias morreram todas as crianças; em outras, uma ou talvez duas conseguiram sobreviver. Naquela época, Hans-Thomas, muitas centenas dos seus antepassados eram crianças. E nenhum deles morreu.
—Como é que você pode ter tanta certeza disso? — perguntei intrigado.
Ele deu uma tragada no cigarro e continuou:
—Porque você está bem aqui ao meu lado, olhando para o mar Adriático.
Essa foi mais uma daquelas conclusões surpreendentes, que me deixavam sem saber como reagir. Uma coisa era certa: meu pai tinha razão. Pois se apenas um de meus antepassados tivesse morrido quando criança, ele ou ela não poderia ter sido meu antepassado.
—A probabilidade de nenhum dos seus antepassados ter morrido ainda crianças era uma para muitos bilhões — prosseguiu ele. E a partir daí suas palavras começaram a jorrar como a água de um dique que se rompe: — Pois não estamos falando aqui apenas da peste, entende? Todos, todos os seus antepassados cresceram e tiveram filhos em épocas que foram palco das mais terríveis catástrofes naturais e que, além do mais, possuíam índices assustadores de mortalidade infantil. É claro que muitos deles chegaram a ficar doentes, mas o fato é que todos sempre sobreviveram às enfermidades. Assim, por muitas centenas de bilhões de vezes você esteve a um milímetro da morte, Hans-Thomas. Sua vida neste planeta foi ameaçada por insetos e animais selvagens, meteoros e raios, doenças e guerras, enchentes e incêndios, envenenamentos e tentativas de assassinato. Só na guerra dos Trinta Anos você deve ter se ferido muitas centenas de vezes, pois você deve ter tido antepassados de ambos os lados. Sim, no fundo, você travou uma guerra contra si mesmo e contra suas possibilidades de nascer três séculos mais tarde. E o mesmo vale para a Segunda Guerra Mundial: se algum bom Norueguês tivesse abatido o seu avô durante o período da ocupação, nem você e nem eu teríamos nascido. Estou falando de uma coisa que aconteceu muitos bilhões de vezes ao longo da história. Todas as vezes que uma seta cortou os ares sibilando, as chances de você nascer foram reduzidas a um mínimo. Mas aí está você, Hans-Thomas, sentado bem ao meu lado e conversando comigo. Entende?
—Acho que sim — respondi. Pelo menos achava que entendia o quanto tinha sido importante o pneu furado na bicicleta da minha avó durante aquele passeio em Froland.
—Estou falando de uma única e longa cadeia de acasos — prosseguiu meu pai. —E essa cadeia pode ser acompanhada até chegarmos à primeira célula viva, que se dividiu e com isso deu o pontapé inicial para tudo o que cresce e medra hoje em dia no planeta. A probabilidade de que a minha cadeia não se interrompeu em algum ponto do passado ao longo de três ou quatro bilhões de anos é tão pequena que quase não podemos imaginá-la. Mas eu consegui chegar até aqui. Isso mesmo, diabos, aqui estou eu! E sei que sorte do cão eu tive para ter o prazer de desfrutar deste planeta na sua companhia. Sei da sorte que teve cada pequeno ser vivo deste planeta.
—E aqueles que tiveram azar? — perguntei.
—Eles não existem! — gritou ele. — Nunca nasceram. A vida é uma loteria gigante, da qual só se veem os ganhadores.
E tendo dito isso, meu pai parou para ficar olhando o mar.
(...)
—(...) Não acredito que o mundo seja um acaso, Hans-Thomas. — Fez uma pequena pausa; depois, debruçou-se sobre mim e sussurrou:
—Acho que o universo é fruto de uma vontade. Um dia você verá que por detrás de todas essas miríades de estrelas e galáxias oculta-se uma intenção.”

(“O Dia do Curinga”, Jostein Gaarder; tradução João Azenha Jr. – São Paulo: Companhia das Letras, 1996 – 139 a 144)