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Dois de Ouros



O caminho misterioso não vai para dentro, mas para fora, não entra nos labirintos, mas sai deles. O caminho misterioso sobe por frias névoas de hidrogênio, braços de espiral rotativos e supernovas que explodem. A última etapa foi um tecido de macromoléculas autoconstruídas.



("Maya", Jostein Gaarder)







sábado, 31 de dezembro de 2011

2012

Receita de Ano Novo


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?) .

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

(Carlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Exercício para 31 de dezembro


Exercício

Transforme os dias em pequenos objetos com os quais você pode brincar. Em bolas de gude amarelas, vermelhas, verdes e azuis. Uma semana inteira você consegue controlar assim. Segunda-feira vermelha, terça-feira verde, quarta-feira violeta... Se você tentar reunir o estoque para um mês inteiro, perderá rapidamente a visão do conjunto. Onde é que ficou o dia 18? O dia 26 era azul ou vermelho? Um ano é suficiente para cobrir o chão da cozinha. Dia 8 de janeiro embaixo da geladeira, 26 de maio debaixo do aquecedor, dia 24 de outubro em algum lugar embaixo do fogão.

Você não consegue andar pela cozinha sem pôr as bolas de gude em movimento. Um dia bate no outro - como moléculas de pensamentos na memória. Agora trezentas e sessenta e cinco esferas rolam pelo chão. Lentamente, o dia 3 de novembro vai rodando pelo chão em direção à mesa, bate na véspera do Natal, que continua rolando até o domingo de Pentecostes.

Você tem um apartamento de três cômodos e multiplica as trezentas e sessenta e cinco bolinhas do ano por setenta ou oitenta. O dia 17 de abril de 1983 pula a soleira da porta e sai rolando pela sala, onde bate no dia 18 de outubro de 1954, no dia 27 de junho de 1996 e no 24 de março de 2012 até parar ao lado do 5 de dezembro de 1989, embaixo da televisão.

 Você nada na opulência. Você se acha rico. Então alguém bate à porta. Cuidadosamente, você escala o chão da sala, afasta algumas centenas de bolas da porta e a abre para uma jovem. Como você não tem rosas vermelhas, oferece a ela um punhado de bolas de gude. Mas a jovem quer jogar com as bolinhas que você lhe dá, e, antes que você se dê conta, já perdeu um milhar delas.

Então batem de novo à porta, e entra um garotinho. Você lhe dá alguns milhares de bolas. No dia seguinte, ele traz sua irmã. Ela exige tantas bolas quanto seu irmão. E só agora você percebe que o seu estoque está começando a diminuir. O chão não está mais tão abarrotado. As bolas de gude não se empilham mais por todos os cantos, como nos velhos bons tempos.

 E depois aparece o homem à porta. Ele lhe mostra um papel no qual consta que você lhe deve quatro mil e quinhentas bolinhas. Você logo se lança ao chão, conta o número exato de bolinhas e paga sua dívida instantaneamente. Você quer saber o que tem, quer saber com o que ainda pode contar. Mas agora só lhe restam umas poucas bolas. Você tem que procurar, tem que correr de um quarto para o outro para achar mais uma.

 Você tranca a porta e procura proteção. O que ainda lhe resta quer guardar para si.

(GAARDER, Jostein. O Pássaro Raro. Tradução de Sonali Bertuol. - São Paulo: Companhia das Letras, 2001. – 7ª reimpressão, 2007.)

Jostein Gaarder é o autor de O Mundo de Sofia.