Eu estava adiantado para um
compromisso. Fui fazer hora no jardim da cidade – cheio de árvores velhas.
Assentei-me num banco, vagabundo. Aproximou-se um menino com caixa de
engraxate. “Vai uma graxinha?” “Vai”, respondi. Não havia mesmo nada a fazer.
Começamos a conversar. É bom conversar com esses meninos que desde cedo aprendem
que, se eles não se virarem, não vão ter o que comer. De repente ele olhou para
um homem que se aproximava. “Lá vem um freguês!”, ele observou. “Faz tempo que você
o conhece?”, perguntei. “Não senhor, nunca vi ele não.” Intrigado, perguntei: “Então,
como é que você sabe que ele é um freguês?” Ele me olhou espantado, admirado de
que eu fosse tão burro e desatento. “O senhor não olhou pros sapatos dele não?”
Eu e ele tínhamos bons olhos. Meus
olhos, de quem está com a vida ganha, podiam vagabundear. Mas os dele eram
olhos de caçador. As caças dos engraxates se reconhecem pelos sapatos.
“O que vemos não é o que vemos, senão
o que somos” (Bernardo Soares). Onças não veem bananas. Macacos não veem orquídeas.
Gatos não veem telas de Van Gogh.
Dentre todos os órgãos dos sentidos, os
olhos são os mais simples do ponto de vista anatômico e funcional. Em tudo se
parecem com uma câmera fotográfica, como o demonstram aqueles desenhos nas
salas de espera dos oftalmologistas. Mas o fato é que, contrariando as
simplicidades anátomo-funcionais, a visão é muito complicada: “Não basta abrir
a janela para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego para ver as
árvores e as flores” (Alberto Caeiro).
O que você vê é o que você quer ver.
Meu ofício de psicanalista se baseia nisso. O paciente vai contando a sua
estória, pensando que eu estou prestando atenção no que ele está dizendo. Mas
eu estou olhando na direção oposta, tentando ver o rosto dele refletido naquilo
sobre o que ele fala. Igual ao que acontece diante do vidro de uma vidraça: a
gente vê as coisas lá fora mas, prestando atenção, vê o rosto também refletido
no vidro, como num espelho.
Vou agora deixar os olhos e começar
num lugar completamente diferente: a adolescência. Inventei um princípio de
criatividade: “Ostra feliz não produz pérola”. É preciso que haja, dentro da
pobrezinha, uma areia, um objeto irritante. Ela produz a pérola lisa para se
livrar da irritação do grão de areia. Os adolescentes são um dos muitos grãos de
areia que me irritam. São um desafio intelectual. Mistérios. Nenhum dos ângulos
através dos quais têm sido compreendidos os esgota. Biologicamente a
adolescência pode ser descrita como uma série de transformações anatômicas e
hormonais. É verdade. Sob um ponto de vista psicológico ela pode ser entendida
como uma crise que decorre de um descompasso entre os processos mentais e os
processos físicos. Mentalmente, os adolescentes continuam a pensar como
crianças. Mas o tamanho do seu corpo, agora, impede que os pais apliquem sobre
eles as técnicas de persuasão e controle que haviam sido eficazes quando eles eram
crianças. Ao poder da adolescência corresponde a impotência dos pais. E por aí
vão se multiplicando as explicações, todas verdadeiras. Eu mesmo já propus uma
série de alternativas descritivas, que vão das maritacas até Orlando. Faço,
agora, conexão entre a adolescência e as coisas que disse sobre a visão: percebi que a adolescência pode ser também compreendida sob um ângulo
oftalmológico: a adolescência é uma perturbação do olhar, um tipo raro de
cegueira: os olhos dos adolescentes não conseguem ver cenários.
Explico-me por meio de uma imagem. É uma
excursão. O ônibus está lotado. Seu itinerário o leva pelos mais fascinantes
cenários. Passa pelos sopés de montanhas cobertas de neve, atravessa florestas
de árvores gigantescas, cruza planícies verdes cheias de animais, margeia
cenários paradisíacos ao longo de praias, atravessa rios cristalinos... A
viagem chega ao fim. Saem os excursionistas. Adolescentes. Gastaram todos os
filmes de suas câmeras fotográficas. Reveladas as fotos, vem o espanto: nenhuma
foto de cenário. Para dizer a verdade, o ônibus permaneceu com as cortinas fechadas
o tempo todo. As fotografias são, todas elas, fotografias de adolescentes
sorridentes.
Notei que, para os adolescentes, não
importa o lugar para onde vão. Os olhos deles não veem cenários. O lugar é
apenas o cenário onde a turma vai se encontrar para representar a mesma peça
que era representada na cidade de origem. Os adolescentes jamais desembarcam
deles mesmos. Os seus olhos registram uma coisa apenas: a turma. Na verdade,
não é bem a turma. Seus olhos registram “eu-na-turma”.
Para isso há uma explicação
psicossociológica. Todos nós temos uma profunda necessidade de reconhecimento.
É preciso que o outro me olhe e que eu sinta o que seu olhar está dizendo: “Gosto
de você. É bom que você exista.” Esta é a razão por que o olhar do pai, da mãe,
da professora, é tão decisivo para a formação da autoimagem da criança. A
criança fica sendo aquilo que o olhar dos outros diz que ela é.
Para a criança, importante é o olhar
do pai e da mãe. Na adolescência há uma troca dos olhares importantes. Os adolescentes
querem ser grandes. Por isso o olhar do pai e da mãe incomodam. Olhares de pai
e mãe são acriançantes. Eles desejam que os filhos permaneçam pequenos. Que continuem
vivendo sob a proteção de suas asas. Isso, às vezes por razões de sabedoria:
sabem que os filhos adolescentes ainda não sabem as coisas do mundo. Às vezes
por razões neuróticas: não querem que seus filhos batam asas... Aí os
adolescentes fogem do olhar do pai e da mãe. Procuram o olhar dos outros
adolescentes. Se vocês prestarem atenção perceberão que as relações entre os adolescentes,
reduzidas à sua condição mínima, se resume em: “Me vejam, me vejam, me vejam”.
Essa é a razão por que se comportam como maritacas, todos gritando ao mesmo
tempo. Não suportam ficar longe dos olhos dos outros. Longe dos olhos, agarram
o telefone. A substância das conversas entre os adolescentes, ao telefone, não
é aquilo que eles dizem, mas o fato de que há alguém que ouve. Longe dos olhos
dos outros, eles se sentem perdidos. Nada mais terrível para um adolescente que
passar um fim de semana num sítio paradisíaco dos pais, na tranquilidade da
natureza, na beleza dos jardins, no gozo das mordomias – sozinho.
Eu compreendo que seja assim. Mas
tenho dó. O mundo é tão bonito. E não faz diferença que seja o pantanal, o
litoral, as montanhas, o deserto: eles vão para esses lugares mas não veem
nada. Os cenários não lhes dão prazer. Os lugares são apenas um ponto, definido
por meio de latitudes e longitudes, onde os mesmos olhos e os mesmo rostos que
se viram vão se ver de novo. No mundo dos adolescentes não há cenários. Só há
outros adolescentes. Para essa doença não há remédio. Ela se cura com o tempo.
“E aí? – Cartas aos adolescentes e a
seus pais”, Rubem Alves, Papirus, 3ª edição, 2000."