♦ 2

Dois de Ouros



O caminho misterioso não vai para dentro, mas para fora, não entra nos labirintos, mas sai deles. O caminho misterioso sobe por frias névoas de hidrogênio, braços de espiral rotativos e supernovas que explodem. A última etapa foi um tecido de macromoléculas autoconstruídas.



("Maya", Jostein Gaarder)







domingo, 8 de novembro de 2015

"Os olhos dos adolescentes" (Rubem Alves)

Eu estava adiantado para um compromisso. Fui fazer hora no jardim da cidade – cheio de árvores velhas. Assentei-me num banco, vagabundo. Aproximou-se um menino com caixa de engraxate. “Vai uma graxinha?” “Vai”, respondi. Não havia mesmo nada a fazer. Começamos a conversar. É bom conversar com esses meninos que desde cedo aprendem que, se eles não se virarem, não vão ter o que comer. De repente ele olhou para um homem que se aproximava. “Lá vem um freguês!”, ele observou. “Faz tempo que você o conhece?”, perguntei. “Não senhor, nunca vi ele não.” Intrigado, perguntei: “Então, como é que você sabe que ele é um freguês?” Ele me olhou espantado, admirado de que eu fosse tão burro e desatento. “O senhor não olhou pros sapatos dele não?”
Eu e ele tínhamos bons olhos. Meus olhos, de quem está com a vida ganha, podiam vagabundear. Mas os dele eram olhos de caçador. As caças dos engraxates se reconhecem pelos sapatos.
“O que vemos não é o que vemos, senão o que somos” (Bernardo Soares). Onças não veem bananas. Macacos não veem orquídeas. Gatos não veem telas de Van Gogh.
Dentre todos os órgãos dos sentidos, os olhos são os mais simples do ponto de vista anatômico e funcional. Em tudo se parecem com uma câmera fotográfica, como o demonstram aqueles desenhos nas salas de espera dos oftalmologistas. Mas o fato é que, contrariando as simplicidades anátomo-funcionais, a visão é muito complicada: “Não basta abrir a janela para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores” (Alberto Caeiro).
O que você vê é o que você quer ver. Meu ofício de psicanalista se baseia nisso. O paciente vai contando a sua estória, pensando que eu estou prestando atenção no que ele está dizendo. Mas eu estou olhando na direção oposta, tentando ver o rosto dele refletido naquilo sobre o que ele fala. Igual ao que acontece diante do vidro de uma vidraça: a gente vê as coisas lá fora mas, prestando atenção, vê o rosto também refletido no vidro, como num espelho.
Vou agora deixar os olhos e começar num lugar completamente diferente: a adolescência. Inventei um princípio de criatividade: “Ostra feliz não produz pérola”. É preciso que haja, dentro da pobrezinha, uma areia, um objeto irritante. Ela produz a pérola lisa para se livrar da irritação do grão de areia. Os adolescentes são um dos muitos grãos de areia que me irritam. São um desafio intelectual. Mistérios. Nenhum dos ângulos através dos quais têm sido compreendidos os esgota. Biologicamente a adolescência pode ser descrita como uma série de transformações anatômicas e hormonais. É verdade. Sob um ponto de vista psicológico ela pode ser entendida como uma crise que decorre de um descompasso entre os processos mentais e os processos físicos. Mentalmente, os adolescentes continuam a pensar como crianças. Mas o tamanho do seu corpo, agora, impede que os pais apliquem sobre eles as técnicas de persuasão e controle que haviam sido eficazes quando eles eram crianças. Ao poder da adolescência corresponde a impotência dos pais. E por aí vão se multiplicando as explicações, todas verdadeiras. Eu mesmo já propus uma série de alternativas descritivas, que vão das maritacas até Orlando. Faço, agora, conexão entre a adolescência e as coisas que disse sobre a visão: percebi que a adolescência pode ser também compreendida sob um ângulo oftalmológico: a adolescência é uma perturbação do olhar, um tipo raro de cegueira: os olhos dos adolescentes não conseguem ver cenários.
 Explico-me por meio de uma imagem. É uma excursão. O ônibus está lotado. Seu itinerário o leva pelos mais fascinantes cenários. Passa pelos sopés de montanhas cobertas de neve, atravessa florestas de árvores gigantescas, cruza planícies verdes cheias de animais, margeia cenários paradisíacos ao longo de praias, atravessa rios cristalinos... A viagem chega ao fim. Saem os excursionistas. Adolescentes. Gastaram todos os filmes de suas câmeras fotográficas. Reveladas as fotos, vem o espanto: nenhuma foto de cenário. Para dizer a verdade, o ônibus permaneceu com as cortinas fechadas o tempo todo. As fotografias são, todas elas, fotografias de adolescentes sorridentes.
Notei que, para os adolescentes, não importa o lugar para onde vão. Os olhos deles não veem cenários. O lugar é apenas o cenário onde a turma vai se encontrar para representar a mesma peça que era representada na cidade de origem. Os adolescentes jamais desembarcam deles mesmos. Os seus olhos registram uma coisa apenas: a turma. Na verdade, não é bem a turma. Seus olhos registram “eu-na-turma”.
Para isso há uma explicação psicossociológica. Todos nós temos uma profunda necessidade de reconhecimento. É preciso que o outro me olhe e que eu sinta o que seu olhar está dizendo: “Gosto de você. É bom que você exista.” Esta é a razão por que o olhar do pai, da mãe, da professora, é tão decisivo para a formação da autoimagem da criança. A criança fica sendo aquilo que o olhar dos outros diz que ela é.
Para a criança, importante é o olhar do pai e da mãe. Na adolescência há uma troca dos olhares importantes. Os adolescentes querem ser grandes. Por isso o olhar do pai e da mãe incomodam. Olhares de pai e mãe são acriançantes. Eles desejam que os filhos permaneçam pequenos. Que continuem vivendo sob a proteção de suas asas. Isso, às vezes por razões de sabedoria: sabem que os filhos adolescentes ainda não sabem as coisas do mundo. Às vezes por razões neuróticas: não querem que seus filhos batam asas... Aí os adolescentes fogem do olhar do pai e da mãe. Procuram o olhar dos outros adolescentes. Se vocês prestarem atenção perceberão que as relações entre os adolescentes, reduzidas à sua condição mínima, se resume em: “Me vejam, me vejam, me vejam”. Essa é a razão por que se comportam como maritacas, todos gritando ao mesmo tempo. Não suportam ficar longe dos olhos dos outros. Longe dos olhos, agarram o telefone. A substância das conversas entre os adolescentes, ao telefone, não é aquilo que eles dizem, mas o fato de que há alguém que ouve. Longe dos olhos dos outros, eles se sentem perdidos. Nada mais terrível para um adolescente que passar um fim de semana num sítio paradisíaco dos pais, na tranquilidade da natureza, na beleza dos jardins, no gozo das mordomias – sozinho.

Eu compreendo que seja assim. Mas tenho dó. O mundo é tão bonito. E não faz diferença que seja o pantanal, o litoral, as montanhas, o deserto: eles vão para esses lugares mas não veem nada. Os cenários não lhes dão prazer. Os lugares são apenas um ponto, definido por meio de latitudes e longitudes, onde os mesmos olhos e os mesmo rostos que se viram vão se ver de novo. No mundo dos adolescentes não há cenários. Só há outros adolescentes. Para essa doença não há remédio. Ela se cura com o tempo.

“E aí? – Cartas aos adolescentes e a seus pais”, Rubem Alves, Papirus, 3ª edição, 2000."