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Dois de Ouros



O caminho misterioso não vai para dentro, mas para fora, não entra nos labirintos, mas sai deles. O caminho misterioso sobe por frias névoas de hidrogênio, braços de espiral rotativos e supernovas que explodem. A última etapa foi um tecido de macromoléculas autoconstruídas.



("Maya", Jostein Gaarder)







quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Exercício para 31 de dezembro


Exercício

Transforme os dias em pequenos objetos com os quais você pode brincar. Em bolas de gude amarelas, vermelhas, verdes e azuis. Uma semana inteira você consegue controlar assim. Segunda-feira vermelha, terça-feira verde, quarta-feira violeta... Se você tentar reunir o estoque para um mês inteiro, perderá rapidamente a visão do conjunto. Onde é que ficou o dia 18? O dia 26 era azul ou vermelho? Um ano é suficiente para cobrir o chão da cozinha. Dia 8 de janeiro embaixo da geladeira, 26 de maio debaixo do aquecedor, dia 24 de outubro em algum lugar embaixo do fogão.

Você não consegue andar pela cozinha sem pôr as bolas de gude em movimento. Um dia bate no outro - como moléculas de pensamentos na memória. Agora trezentas e sessenta e cinco esferas rolam pelo chão. Lentamente, o dia 3 de novembro vai rodando pelo chão em direção à mesa, bate na véspera do Natal, que continua rolando até o domingo de Pentecostes.

Você tem um apartamento de três cômodos e multiplica as trezentas e sessenta e cinco bolinhas do ano por setenta ou oitenta. O dia 17 de abril de 1983 pula a soleira da porta e sai rolando pela sala, onde bate no dia 18 de outubro de 1954, no dia 27 de junho de 1996 e no 24 de março de 2012 até parar ao lado do 5 de dezembro de 1989, embaixo da televisão.

 Você nada na opulência. Você se acha rico. Então alguém bate à porta. Cuidadosamente, você escala o chão da sala, afasta algumas centenas de bolas da porta e a abre para uma jovem. Como você não tem rosas vermelhas, oferece a ela um punhado de bolas de gude. Mas a jovem quer jogar com as bolinhas que você lhe dá, e, antes que você se dê conta, já perdeu um milhar delas.

Então batem de novo à porta, e entra um garotinho. Você lhe dá alguns milhares de bolas. No dia seguinte, ele traz sua irmã. Ela exige tantas bolas quanto seu irmão. E só agora você percebe que o seu estoque está começando a diminuir. O chão não está mais tão abarrotado. As bolas de gude não se empilham mais por todos os cantos, como nos velhos bons tempos.

 E depois aparece o homem à porta. Ele lhe mostra um papel no qual consta que você lhe deve quatro mil e quinhentas bolinhas. Você logo se lança ao chão, conta o número exato de bolinhas e paga sua dívida instantaneamente. Você quer saber o que tem, quer saber com o que ainda pode contar. Mas agora só lhe restam umas poucas bolas. Você tem que procurar, tem que correr de um quarto para o outro para achar mais uma.

 Você tranca a porta e procura proteção. O que ainda lhe resta quer guardar para si.

(GAARDER, Jostein. O Pássaro Raro. Tradução de Sonali Bertuol. - São Paulo: Companhia das Letras, 2001. – 7ª reimpressão, 2007.)

Jostein Gaarder é o autor de O Mundo de Sofia.


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